Texto disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/um-brasileiro-no-topo-do-mundo
Especial
Um brasileiro no topo do mundo
O carioca Artur Avila conquistou, aos 35 anos, o prêmio máximo da matemática por sua produção portentosa e constante de soluções para enigmas que há décadas desafiam seus pares
Monica Weinberg, de Paris
SENHOR DO CAOS - Avila e a borboleta, símbolo da teoria que o consagrou: em algum desvão escuro do caos esconde-se a ordem que só a matemática descobre (Gilberto Tadday/VEJA)
A matemática possui não apenas verdade, mas também suprema beleza — uma beleza fria e austera, como a da escultura.” Para quem apanhou da matéria na escola, a definição do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) é uma afronta. Afinal, no mesmo instante em que esta reportagem está sendo lida, crianças e jovens em todas as partes do mundo estão repetindo em dezenas de idiomas: “Eu detesto matemática!”. Isso não a torna menos verdadeira, austera e bela. A matemática é a linguagem que a natureza usa para expressar seus segredos aos seres humanos e, assim, se deixar dominar por nosso intelecto. Embora alguns símios demonstrem habilidades básicas com números, reconhecendo conceitos como muito e pouco, o pensamento matemático é tão e somente humano quanto a linguagem e, quem diria, o comércio. Nenhuma outra espécie descobriu o potencial de criação de riqueza das trocas vantajosas para os dois lados. Sem a capacidade matemática, não teria havido civilização. Os grandes gênios que semearam o terreno dos números para a evolução do conhecimento sempre buscaram harmonia e beleza ao se mover na direção da verdade, a grande recompensa. No começo, eram cientistas no sentido universal do termo, mas, à medida que a disciplina foi ganhando complexidade, o desbravamento ficou a cargo de especialistas — ou ultraespecialistas. É a esse grupo seleto que pertence Artur Avila, 35 anos, o primeiro brasileiro a gravar seu nome entre os pesos-pesados da matemática deste século como ganhador da honraria máxima, a Medalha Fields, prêmio que ombreia em prestígio com o Nobel.
Nenhum brasileiro voou tão alto no mundo acadêmico. O jovem carioca do Leblon ingressou em um panteão no qual só entra quem dá nova estatura à ciência germinada pelos egípcios, cultivada pelos gregos e elevada às alturas pelos homens pós-Renascença. Apenas aqueles cujos trabalhos lançam verdadeira e duradoura luz sobre enigmas resistentes da matemática e têm potencial para produzir mais podem sonhar em ser lembrados para receber a Medalha Fields. O brasileiro Avila é desses poucos e felizes 56 agraciados — aí computados os que, como ele, receberam a distinção durante o Congresso Internacional de Matemáticos, na Coreia do Sul. Mais do que virtuoses em seus campos, eles são autores de descobertas que reverberaram de forma poderosa na comunidade científica pela originalidade e pelo poder de abrir novas portas para o saber. Quando tomou conhecimento, há dois meses, de que seria agraciado com a medalha, Avila conjecturou em sua lógica peculiar: “Ótimo. Pronto. Esse problema acabou”.
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“Artur Avila foi escolhido pelo conjunto da obra, um sinal de maturidade e vigor criativo”, explicou a VEJA o matemático francês Étienne Ghys, 59 anos, integrante da comissão que elegeu os atuais medalhistas. O número de publicações com seu nome nas principais revistas especializadas é três a quatro vezes maior do que as assinadas por geniozinhos da mesma idade: são 56 trabalhos feitos em colaboração com estudiosos de todo o mundo. Dali se extrai a maturidade. Artur “atacou” e “destroçou” (esse é o jargão) problemas que prendiam a comunidade acadêmica em labirintos teóricos fazia décadas. Diz ele: “Na matemática, você está perdido quase o tempo todo, sem nenhuma garantia de que vai sair do escuro, por mais força que coloque em cima de um problema”.
Nesse mundo de esforços sem garantias de sucesso, Avila foi escolher como sua especialidade justamente uma das áreas mais complexas. Seu nicho é conhecido pelos matemáticos como sistemas dinâmicos. Simplificadamente, é o campo que tenta encontrar ordem no caos ou descobrir padrões em certos fenômenos que, à primeira vista, parecem completamente aleatórios. Albert Einstein, talvez o maior gênio científico de todos os tempos, intuitivamente rejeitava a incerteza — e com sua famosa expressão “Deus não joga dados com o universo” quis dizer que o desmonte teórico de um sistema inevitavelmente abriria caminho para outro tipo de ordenamento. Einstein bagunçou a sinfonia celestial de sir Isaac Newton e o balé perfeito dos astros em suas órbitas. Einstein encheu o céu de galáxias instáveis, estrelas explosivas, buracos negros devoradores de matéria. Um caos. Mas um caos obediente a uma regra fundamental, única, imutável: nada pode superar a velocidade da luz. Essa constante harmoniza o universo de Einstein e o torna tão previsível que até Newton se daria por satisfeito. Mas onde estaria o equivalente da velocidade em outros sistemas nos quais certamente existem ordem e regras, mas elas estão escondidas? Bem, elas estão em desvãos que só a matemática consegue iluminar. É nesses desvãos que o brasileiro Artur Avila tenta ver ordem no caos, o que ilumina mas, para desespero de nosso cérebro limitado, não acaba com todos os enigmas, a exasperação que, de novo, Einstein formulou com perfeição: “A coisa mais incompreensível do universo é justamente o fato de ele poder ser compreendido”.
O mais incompreensível no caos é justamente o fato de ele poder ser compreendido. É a isso que se dedica o brasileiro premiado com a Medalha Fields na semana passada. Deve-se ao meteorologista americano Edward Lorenz (1917-2008) a primeira reflexão sistemática sobre, afinal, o que rege o caos. Lorenz concluiu que, mesmo de posse de todas as informações — temperatura, pressão, chuva, sol —, era impossível cravar a previsão do tempo com dias de antecedência. Isso porque uma imperceptível alteração no ponto de partida — o vento provocado pelo singelo bater de asas de uma borboleta, comparou ele famosamente — poderia alterar tudo, tudo mesmo. Daí a questão: “O bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas?”. O lugar onde a borboleta bate as asas e o efeito causado mudam ao gosto do freguês, mas a indagação central de Lorenz permanece: como, por que e em sistemas de que tipo eventos aparentemente insignificantes podem dar origem a fenômenos avassaladores aparentemente desconexos em pontos remotos? A melhor aposta em uma resposta está em Avila e seus colaboradores.
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“A matemática é um ser vivo alimentado de lógica, fruto da mente humana, e Artur se nutre o tempo todo dele”, resume César Camacho, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), onde o jovem fez o doutorado. As questões que o rondam, portanto, repousam nesse mundo de abstração e são de uma complexidade tal que muito matemático se perde. “Às vezes, nem mesmo meus coautores entendem o que escrevo”, reconhece ele, que não se incomoda em ser pouco compreendido. Fiel ao lema “Quanto mais complicado, mais interessante”, Avila resolveu estudar a evolução do movimento de uma bola em um bilhar pentagonal — no jargão, um “brinquedo” matemático. Por que pentagonal? Simples: no quadrado ou no hexágono tudo é muito previsível. A ideia desses “brinquedos” não é tornar o jogo de salão (que Avila, por sinal, não pratica) mais atraente, mas extrair deles leis que possam reger tanto bolas de bilhar quanto partículas subatômicas interagindo com campos magnéticos em uma dimensão quântica. “Grandes matemáticos impactaram de forma decisiva diversas áreas do conhecimento sem nunca ter ambicionado nem sabido disso”, lembra Jairo da Silva, doutor em lógica e epistemologia. O alemão Johannes Kepler (1571-1630) usou os princípios divisados 2 000 anos antes pelos gregos para descrever a órbita elíptica dos planetas. Wernher von Braun e os engenheiros do Projeto Apollo utilizaram tão somente os cálculos de Kepler para colocar o primeiro homem na Lua, em 1969. É uma cadeia de transmissão de verdades reveladas pela matemática graças à “beleza fria e austera” que Bertrand Russell viu nela.
A trajetória de Avila combina um talento anunciado cedo, a exposição a um ambiente que o puxou para a fronteira de sua área e o pragmatismo para fazer escolhas na carreira. Na escola ou no Impa, Avila era daqueles alunos que pareciam ter pouca expressão, mas, quando abria a boca, mostrava que estava dois, três anos à frente dos colegas e levantava questões que emudeciam os professores. Quando descobriu as olimpíadas de matemática, praticamente deu adeus à escola. Aos 16 anos, no Impa e já fazendo mestrado, esqueceu as olimpíadas. “Fez” (entre aspas mesmo) a faculdade de matemática, na Universidade Federal do Rio, junto com o doutorado. Aos 21 anos, Avila já tinha concluído o Ph.D. e ainda estava pendurado em álgebra linear “básica” porque perdera o exame. Vingou-se solucionando um problema no qual o professor trabalhava fazia uma década. Moral da história para Avila? “Nunca subestime um aluno.”
Vendo o invisível
As barras azuis acima parecem não ter significado. O olhar matemático, porém, distingue nelas a representação gráfica do Conjunto de Cantor. Proposto pelo alemão Georg Cantor no século XIX, esse conjunto é fechado, infinito não numerável, fractal e tem medida nula. Entendeu? Não. Então bem-vindo ao grupo formado por 99,999% da humanidade. Artur Avila faz parte de uma minoria do restante 0,001% de pessoas que não apenas sabem que Cantor formulou uma pedra fundamental da matemática, mas que são capazes de aplicar esse conhecimento a outros campos da ciência.
No caso de Avila, foi a física quântica, em especial a teoria segundo a qual, na interação com um campo magnético, um elétron adquire diferentes estágios de energia, formando um espectro ou leque que, por Deus não jogar dados com a natureza, deveria ter uma sequência não aleatória. Os físicos quânticos, coitados, não podem, por definição, medir diretamente os fenômenos sem arruinar todo o processo. Eles então teorizaram que o leque de energia do elétron deveria ser um Conjunto de Cantor. Avila deu a eles a certeza matemática de que é isso mesmo e, assim, fez o invisível se tornar visível.
Filho de funcionários públicos, ele escolhe onde e como quer trabalhar. Há treze anos, reveza-se entre o Rio, onde segue baseado no Impa, e Paris, onde aprendeu a apreciar foie gras e tornou-se diretor de pesquisas no Centro Nacional de Pesquisa Científica, uma espécie de CNPq. O cargo é pomposo, mas, tirando um ou outro formulário que precisa preencher, Avila se recusa a deixar que as aparências de ordem, sejam burocráticas, sejam acadêmicas, perturbem seu caos criativo. Oficialmente ele divide uma sala na Universidade Paris VI com um colega que ele nunca viu. No Rio, faz da praia o “escritório”. Conta que um amigo dos tempos do Colégio São Bento, onde passou quase toda a fase escolar, achava que sua vida era tão mansa que decidiu entrar para a faculdade de matemática. “Claro que não funcionou”, lembra Avila. Fazer política não é com ele. Diz um ex-colega do Impa, Jairo Bochi, 39 anos: “O Artur não assiste a palestras só por educação e não perde tempo com quem não lhe interessa”.
Sua casa em Paris fica estrategicamente localizada a poucos minutos a pé de alguns dos melhores centros da matemática do mundo: na Rua D’Ulm, próxima ao Panteão, enfileiram-se a École Normale Supérieure, o Collège de France e o Instituto Poincaré. O espremido apartamento parisiense é um caos à procura de ordem: roupas no sofá, no chão, na mesa, documentos espalhados e caixas vazias de leite. Nenhum livro à vista. O último que leu foi O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, em 2009. “Perdi esse hábito, prefiro conversar”, diz. A escolha do terno, a barba e o corte de cabelo para ser apresentado ao mundo na cerimônia da premiação em Seul se transformaram em odisseia. De frente para o Museu do Louvre, no qual nunca botou os pé nesses anos todos de Paris, ele conclui: “Só a matemática me interessa”.
como Artur Avila se tornou um matematico tão importante?
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